terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Os meninos do Brasil

Sean

Sean Goldman não é brasileiro, mas certamente tem os vínculos mais fortes com nosso país. O pai americano alega ter sempre tentado entrar em contato com o menino. A família brasileira diz desconhecer este esforço. Apesar disso, creio não haver maiores dúvidas de que a coisa certa e justa a se fazer era mesmo devolver a criança ao pai biológico. Sempre digo que o laço sanguíneo, por si, não quer dizer absolutamente nada. Ser pai não é ter uma relação com uma mulher, é dedicar a vida a outro ser. Um pai adotivo pode ser tão ou mais “verdadeiro” que um pai biológico. O que faz o americano, David, merecer a guarda de Sean é o fato de a mãe ter praticamente seqüestrado a criança. Foi extirpado deste pai, o direito de ver seu próprio filho crescer. O americano não tem nenhum antecedente que o desabone, e demonstra condições de oferecer ao filho uma boa vida. O ideal seria a convivência do menino com ambas as famílias, não fossem a hostilidade entre elas e a distância inviável. A Justiça brasileira cumpriu com seu dever, e devolveu ao pai o direito de viver com Sean.

Ainda assim, é inevitável pensar nos vínculos que esta criança criou com o Brasil. Com o padrasto, com a irmã, com os avós maternos, com todos os familiares, claro. Mas também com os amigos, colegas de escola, professores, lugares que ele conhece e gosta de freqüentar, os programas a que ele assiste na TV etc. De repente, ele será separado de tudo isto. Tenho dificuldade para pensar em algo mais traumático. O menino sequer fala inglês tão bem. Psicólogos, professores particulares e outros profissionais tentarão facilitar a vida do menino daqui pra frente, mas o problema não tem solução objetiva, muito menos garantida. A adaptação aos Estados Unidos custará muito a Sean, não sei nem se será possível um dia. Fico imaginando que o vínculo com a família da mãe pode ser tão intenso, que talvez Sean, quando atingir a maioridade, opte por voltar ao Brasil. Aí, a decisão não caberá mais à Justiça de nenhum país. Até quando a lembrança da família brasileira persistirá na mente e no coração de Sean? Só espero que as respectivas partes tenham maturidade e sensatez para buscar sempre o melhor para o menino.

Márcio

Márcio, de dois anos, teve que se submeter a cirurgias para retirar agulhas que ameaçavam órgãos vitais. O caso chocou muitas pessoas e, para surpresa geral, casos similares começaram a surgir pelo país em um curto período de tempo. Certamente, estas pessoas que foram a hospitais e revelaram agulhas em seus corpos, nos últimos dias, não são as únicas que foram submetidas a este ritual, ao que tudo indica, de magia negra. Este episódio deixa muito clara a existência de dois “Brasis”: um que fica absolutamente escandalizado com agulhas no corpo de um menino, e outro que tem este tipo de prática como uma realidade quase cotidiana. Um Brasil – moderno, “civilizado”, metropolitano, com melhores níveis de escolaridade e instrução, da mídia, dos jornalistas, da informação, dos profissionais liberais, dos cidadãos esclarecidos – ignora completamente outro Brasil – da pobreza, da miséria e do atraso. Não dá pra desassociar um crime como este da questão social.

Não é por acaso que as crianças perfuradas por agulhas (que apareceram na mídia) moram no interior do país, e são de famílias pobres. Isso significa que pobres são menos civilizados e se preocupam menos com seus filhos? Não, significa que a miséria e a pobreza podem desconstituir os próprios valores humanos. Concentração de renda traz fome e necessidades de várias ordens a muitas regiões de um país, mas também traz a própria deterioração dos valores familiares e humanitários. Populações inteiras vivem sem referências de comportamento, sem o reconhecimento dos direitos mais fundamentais, sem noções importantes de regras e limites para a convivência em sociedade. Noções que figuras modernas como Estado, civilização, progresso, levaram a alguma regiões – em alguma medida – mas que nunca chegaram a tantas outras regiões. O Brasil é um dos vários países que carregam esta dívida histórica. Nos últimos anos, ações públicas têm sido realizadas para reverter este quadro, mas é claro que muito ainda precisa ser feito.

O Brasil “esclarecido”, ao mesmo tempo em que se escandaliza, tem enorme dificuldade para reconhecer a raiz social destes episódios bárbaros. Desconcentração de renda, obviamente, é matéria que não interessa ao Brasil mais rico. Como não é politicamente correto admitir isto, construímos diariamente camadas de discursos politicamente aceitáveis, para refutar a pauta da distribuição de renda. Continuaremos repetindo o mantra dos intelectuais: “não pode dar o peixe, tem que ensinar a pescar”. E nos recusamos a ver que muitos já estão morrendo afogados. Para quem sofre com necessidades básicas, ações emergenciais são tão importantes quanto ações estruturais, de médio e longo prazo. Infelizmente, nada impede que outras crianças passem pelo mesmo tipo de barbaridade que o Márcio, da Bahia. Provavelmente, isto é inevitável. Mas melhorar a situação destas famílias historicamente penalizadas passa necessariamente pela distribuição da renda, além de vários outros serviços públicos, é claro. O Brasil instruído esforça-se para ignorar isto.

2 comentários:

  1. Também concordo com a decisão de devolver Sean ao pai biológico. Imagino a dor da família no Brasil e as dificuldades do menino, mas não consigo deixar de pensar que, se eu fosse pai e tivesse meu filho sequestrado de mim, não descansaria até esgotar todas as possibilidades de tê-lo de volta.

    Quanto ao menino Márcio, é revoltante mesmo (aliás, é natural, mas ainda impressiona como as mulheres manifestam reações mais viscerais de indignação, talvez seja instinto materno ou algo assim...). Mas essa parte "isso significa que pobres são menos civilizados e se preocupam menos com seus filhos? Não, significa que a miséria e a pobreza podem desconstituir os próprios valores humanos" é muito bem encaixada. A falta de referências de comportamento e achar que tudo é uma questão estrutural a longo prazo é algo grave.

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  2. NO começo eu dei razão para o pai, afinal, é obvio que se a preferencia é da mãe, depois do pai.

    Mas, depois que aconteceu percebi que o interesse dele era ganhar dinheiro com o Reality Show que a NBC criou.

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