A
vida toda, eu ouvi um mesmo argumento sobre a questão da saúde no Brasil:
sempre que se discutia o péssimo atendimento aos pacientes, as pessoas
pontuavam que o problema não é a falta de médicos, mas a concentração destes
profissionais em certas regiões. Era algo tão recorrente, que eu nunca parei
pra questionar a procedência dessa afirmação, já tinha naturalizado.
Especialmente, porque muitas vezes ela vinha de pessoas ligadas à área e que,
supõe-se, são entendidas do assunto. Logicamente, existe uma forma de aferir
isso. Um jeito bem óbvio de verificar se falta ou não determinada mão de obra em
um país é fazendo a proporção entre a quantidade destes profissionais sobre o
total da população, e comparando com outros países. Foi grande a minha surpresa
quando eu vi pela primeira vez qual era esse número, no Brasil.
Países
como Portugal, Espanha, França, Alemanha têm de 3 a 4 médicos por milhabitantes. Mas também em países latinos como Argentina e Uruguai, esse número
fica acima de 3. Países como Itália e Cuba têm 6. O Brasil tem 1,9 médicos por
mil habitantes. 1,9! Faltam médicos
no país, portanto. Mesmo assim, ainda hoje, entidades de classe, como o
Conselho Federal de Medicina continuam repetindo o mantra de que não faltam
médicos, eles apenas estão concentrados geograficamente. Estranho! Contradizem
dados divulgados, às vezes, por eles próprios. Muitos dos profissionais da área
também propagam essa ideia, muitas vezes, sem sequer conhecer o dado brasileiro
de 1,9 médicos / mil habitantes. As pessoas também falam como se os problemas
fossem excludentes: ou falta médico, ou eles estão concentrados. As duas
coisas, não pode. Isso não faz sentido! Os problemas, infelizmente, podem
perfeitamente coexistir. E é exatamente este o caso brasileiro. O DF tem 4
médicos por mil habitantes, estados como o Pará, o Maranhão e o Amapá têm menos
de 1. E a média nacional não chega a 2.
Segundo
o Plano Nacional de Educação Médica, lançado em 2011, o Governo Federal
pretende ampliar essa taxa brasileira para 2,5 até 2020. Algo mais civilizado.
É preciso deixar bem claro que, de forma alguma, o problema é somente a falta
de médicos. Óbvio que faltam mais investimentos em infraestrutura nos hospitais,
nos postos de saúde, e nas próprias universidades; faltam equipamentos e
condições para que os profissionais exerçam adequadamente a sua função, sem
colocar as pessoas em risco; faltam estratégias de prevenção e educação, para
que a população adoeça menos; dentre inúmeras outras carências. Mas, no que diz
respeito à quantidade de médicos no Brasil, é fato que ela é menor do que o
necessário. Tem ficado claro também que é neste ponto que há discórdia, há
disputa. Disputa política, diga-se, entre visões de mundo e interesses. A
recente disposição do Governo brasileiro de trazer médicos estrangeiros deixou
isso bastante claro, com uma reação imediata do Conselho Federal de Medicina.
Acho
impossível compreender esse dilema sem passar por um aspecto fundamental: o mercadológico.
Médicos, no Brasil – recém-formados, ainda generalistas – têm perspectivas de
ganhar até R$ 25.000 oferecidos por prefeituras no interior do país. Ainda
assim, essas prefeituras, muitas vezes, não conseguem profissionais para cuidar
da saúde dos seus cidadãos. É esse o valor que está oferecendo Porto Estrela,
no interior do Mato Grosso, sem sucesso. O município fica a 170 km de Cuiabá e
tem 3.600 habitantes. “Mesmo a peso de ouro, prefeituras enfrentam dificuldades
para contratar médicos no interior e até na periferia das grandes cidades”, diz
reportagem de O Globo. Ocorre que, nas capitais, a perspectiva salarial pode
ser ainda maior. Médico com residência, dependendo da especialidade, tem uma
perspectiva salarial de R$ 30.000 a R$ 40.000. Para a realização de uma única
operação, em áreas tipo neurocirurgia, um médico pode cobrar mais de R$ 70.000.
Com
uma intensa e sacrificante carga de plantões, carro zero pode ser uma questão
de 1 a 2 anos, para o médico, no Brasil. Apartamento próprio, alguns anos a
mais. Relatos que eu já ouvi dos próprios profissionais da área. Poucas
carreiras, seguramente, oferecem esse tipo de retorno. E aí temos uma espécie
de contrassenso fiscal: um dos maiores investimentos públicos no ensino
superior provoca um dos maiores abismos sociais, num país em que a maioria da
população ganha de 1 a 2 salários mínimos, de R$ 670. Mas são as regras do
jogo. É, aliás, a regra mais básica de mercado: preço e valor são inversamente
proporcionais à oferta. Exatamente por ser uma mão de obra demandada por todos,
mas escassa, considerando o total da população, a carreira na medicina permite
uma pretensão salarial muito privilegiada. Aumentar a oferta da mão de obra
médica no país vai significar uma redução desta perspectiva de retorno. E eu
não vejo como qualquer categoria profissional pode reagir bem a este tipo de
cenário, mesmo quando a redução é de um patamar excepcional para outro, ainda
muito alto.
Muitos
médicos lembram que não dá pra comparar um trabalhador com pouca ou nenhuma
qualificação com um profissional que passou mais de 10 anos numa rotina de
estudos e práticas extremamente árdua. Por outro lado: quantas outras
carreiras, mesmo com mais de 10 anos de formação e de sacrifício similar, nem
se aproximam desse tipo de retorno? E ainda: qualquer coisa que não seja o
médico ganhar 40 vezes mais que o
salário mínimo do país é não reconhecer o esforço para a sua formação?! Isso
não é aceitável. Não há nenhum problema no fato, em si, de médicos ganharem
muito bem. O problema é quando uma possível flexibilização dessa perspectiva
salarial trava debates que são fundamentais para o país, numa postura que se
insinua corporativa e apegada a benefícios particulares. É preciso admitir que
muitas das reivindicações do CFM são válidas e devem ser consideradas, e tem de
haver cuidado mesmo para trazer profissionais de outros países, como Cuba, ou
mesmo Portugal e Espanha, países com os quais o Governo também trabalha.
Mas
o próprio Ministério da Saúde já descartou a validação automática de diplomas.
E também ninguém tá inventando a roda. Na Inglaterra, 40% dos médicos vieram deoutros países; nos Estados Unidos, 25%; Canadá, 22%; no Brasil, 1%. Pro texto não ficar tão
condenatório, confesso: eu mesmo, nascido e criado em Belém, com família e
amigos aqui, preferências e hábitos enraizados, dificilmente iria pra uma
cidade do interior do Pará, ainda que pra ganhar mais. Prefiro batalhar por
aqui mesmo. Como o município de Belterra, no interior da Floresta Amazônica,
com condições precárias, de vida em geral, e não apenas no aparato da saúde pública,
vai conseguir atrair profissionais médicos? Se isso não acontece nem com salário
de 25 mil reais (algo inimaginável para a grande maioria dos brasileiros)? Nós
precisamos de mais compromisso e seriedade dos políticos com a saúde.
Precisamos ainda formar mais médicos brasileiros, inclusive de cidades do
interior, pra que essa situação comece a mudar. Mas são necessárias também soluções
– criteriosas, porém, urgentes – para obter mão de obra médica em áreas
carentes o quanto antes. É o tipo de briga que vale muito à pena comprar.
Doença não espera.